"Não há bons ou maus combates, existe somente o horror ao sofrimento aplicado aos mais fracos, que não podem se defender."

(Brigitte Bardot)

sábado, 3 de julho de 2010

Morre Roberto Piva

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Morreu aos 72 anos o poeta Roberto Piva, na tarde deste sábado (3), Piva foi vítima de falência múltipla dos órgãos por conta de uma insuficiência renal.

Porém, o poeta já sofria há dez anos de Mal de Parkinson, e descobriu um câncer na próstata quando foi internado. A doença já estava em processo de metástase.

O corpo do poeta será velado às 11h deste domingo (4) no cemitério do Araçá, na zona oeste da capital paulista, e depois será cremado no crematório da Vila Alpina, na zona leste da cidade.

Roberto Piva utilizava a loucura da cidade de São Paulo para compor suas obras, como "Paranoia" material publicado em 1963. Além da caótica "terra da garoa", Piva era adepto do movimento surrealista e mostrava a cidade, em seus poemas, como uma viagem erotizada.

Junto a CTC - Cia Teatro Câmara (no Teatro Câmara) foi indicado por Antunes Fº p/ fazer um Prét-à-Porter de poesia.

Paranóia

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

Piva aos 70 anos
PRAÇA DA REPÚBLICA DOS MEUS SONHOS

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas
onde García Lorca espera seu dentista
onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus Sonhos
última sabedoria debruçada numa porta santa

A PIEDADE

Eu urrava nos poliedros da Justiça
meu momento abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite
eu seria um bom filho
meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos

METEORO

Eu direi as palavras mais terríveis esta noite
enquanto os ponteiros se dissolvem
contra o meu poder
contra o meu amor
no sobressalto da minha mente
meus olhos dançam
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber se as mulheres são férteis
se Deus caiu no mar
se Kierkegaard pede socorro numa montanha da Dinamarca?

os telefones gritam
isoladas criaturas caem no nada
os órgãos de carne falam morte
morte doce carnaval de rua do fim do mundo
eu não quero elegias mas sim os lírios de ferro dos recintos
há uma epopéia nas roupas penduradas contra o céu cinza
e os luminosos me fitam do espaço alucinado
quantas lindas garotas eu não vi sob esta luz?

eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido
narcóticos santos ó gato azul da minha mente
Oh Antonin Artaud
Oh Garcia Lorca
com seus olhos de aborto reduzidos a retratos

almas
almas
como icebergs
como velas
como manequins mecânicos
e o clímax fraudulento dos sanduíches almoços
sorvetes controles ansiedades
eu preciso cortar os cabelos da minha alma
eu preciso tomar colheradas de Morte Absoluta
eu não enxergo mais nada
meu crânio diz que estou embriagado
suplícios genuflexões neuroses
psicanalistas espetando meu pobre esqueleto em férias

eu apertava uma árvore contra meu peito como se fosse um anjo
meus amores começam crescer
passam cadillacs sem sangue
os helicópteros mugem
minha alma
minha canção
bolsos abertos da minha mente
eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos

Roberto Piva