"Não há bons ou maus combates, existe somente o horror ao sofrimento aplicado aos mais fracos, que não podem se defender."

(Brigitte Bardot)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

“A Carne do Filho”

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Buda uma vez contou a seguinte estória aos monges dele:

Um casal e o seu filho mais novo estavam cruzando um vasto deserto a caminho de buscarem asilo em outra região. Mas eles não tinham planejado bem e, no meio do deserto, estavam somente na metade do caminho quando ficaram sem comida. Percebendo que todos os três iriam morrer no deserto, os pais tomaram uma decisão horripilante: matar e comer o próprio filho. Toda manhã eles comiam um pedacinho da carne do filho, o suficiente para ter energia de caminhar um pouco mais adiante, o tempo todo chorando. “Onde está o nosso garotinho?” Eles carregavam o restante da carne do filho nos ombros, para que continuasse secando ao sol. Toda noite o casal olhava um para o outro e perguntava: “Onde o nosso amado filho está agora?” E choravam e puxavam os cabelos, e consternados batiam no peito. Finalmente, eles foram capazes de cruzar o deserto e chegar à nova terra.

Quando Buda terminou de contar esta estória, perguntou aos monges: “Vocês acham que este casal gostou de comer a carne do filho deles?”

“Não,” responderam os monges. “Esses pais sofreram terrivelmente quando tiveram que ingerir a carne do filho.” Então Buda disse: “Nós temos que praticar nos alimentando de um modo tal que retenha compaixão em nosso coração. Temos que comer em estado de consciência plena. Senão comeremos a carne de nossos próprios filhos.”

No Sutra “A Carne do Filho”, Buda nos ensina a praticar o consumo consciente para preservar o nosso futuro. O nosso futuro pode ser sempre vislumbrado em nosso presente. Se o presente parecer de um jeito, o futuro provavelmente parecerá o mesmo, pois o futuro é feito do presente. Portanto, para salvaguardarmos nosso futuro temos que fazer mudanças no presente. Se aplicarmos o Sutra “A Carne do Filho” em nosso cotidiano, seremos capazes de nos salvar e salvar o nosso planeta.

A situação em que a Terra se encontra hoje foi construída pela produção inconsciente e pelo consumo inconsciente. Estamos violentando nossos lares e estamos nos defrontando com o aquecimento global e mudanças climáticas catastróficas. Criamos um ambiente que é conducente à violência, ódio, discriminação e desespero.

No mundo moderno as pessoas pensam que os seus corpos lhes pertencem, e que elas podem fazer o que quiserem consigo mesmas. “Temos o direito de viver nossas próprias vidas,” dizem elas. A lei apóia tal declaração; esta é uma das manifestações do individualismo. Mas de acordo com o ensinamento de Buda, o seu corpo não é seu. O seu corpo pertence aos seus ancestrais, aos seus pais e às futuras gerações. Ele também pertence à sociedade e a todos os outros seres vivos. Todos eles se reuniram – as árvores, as nuvens, o solo, tudo – para trazer a presença deste corpo. Nossos corpos são como a Terra. E existe a Bodisatva Portadora da Terra, sustentando tudo em conjunto.

Manter o seu corpo saudável é uma forma de expressar gratidão e lealdade a todo o cosmos, a todos os ancestrais e futuras gerações. Se formos saudáveis, todos podem se beneficiar disso – não apenas os seres humanos, mas também os animais, plantas e minerais. Este é um preceito do bodisatva. Quando praticamos os cinco treinamentos da consciência plena nós já estamos no caminho de um (a) bodisatva.

Nós somos o que consumimos. Se olharmos profundamente para o quanto e quais itens consumimos diariamente, iremos conhecer muito bem a nossa própria natureza. Temos que comer, beber e consumir, mas se fizermos isto irrefletidamente, podemos destruir nosso corpo e nossa consciência, demonstrando ingratidão para com os nossos ancestrais, nossos pais e futuras gerações. Todos nós sabemos que às vezes abrimos o refrigerador e tiramos um item que não é bom para nossa saúde. Somos inteligentes o bastante para reconhecer isto. Mas mesmo assim continuamos e comemos aquilo para tentar cobrir a inquietação dentro de nós. Consumimos para esquecer nossas preocupações e nossas ansiedades. A prática recomendada por Buda é a de que quando um sentimento de ansiedade ou medo surge, não devemos tentar suprimi-lo através do consumo. Ao invés, convidamos a energia da mente consciente a se manifestar. Praticamos caminhando conscientemente e respirando conscientemente para gerar a energia da consciência plena, e solicitamos a esta energia que cuide da energia que está nos fazendo sofrer. Se não praticarmos, não teremos suficiente energia de consciência plena para cuidar do nosso medo, da nossa raiva, e é por isso que consumimos para reprimir tais energias negativas.

Buda recomenda que cada monge e monja tenham uma tigela para levar à ronda da mendicância. O termo budista para a tigela de mendicância é “recipiente de medida apropriada”. Visto que a tigela é exatamente do tamanho correto, sempre sabemos o quanto comer. Nunca comemos demais, porque comer muito trás doença aos nossos corpos. Obesidade se tornou um imenso problema de saúde na sociedade ocidental, enquanto povos nos países pobres não têm o suficiente para comer.

Ignoramos a regra da moderação. Consciência plena da alimentação nos ajuda saber o que e o quanto devemos comer. Devemos nos servir somente do que podemos comer. Eu sugiro, para a maioria de nós, que nos sirvamos menos do que estamos habituados a comer diariamente. Vemos que pessoas que consomem menos são mais saudáveis e mais alegres, e àquelas que consumem muito podem sofrer muito profundamente. Se mastigarmos cuidadosamente, se comermos somente o que é saudável, não iremos levar doenças para dentro de nossos corpos e mentes. Não iremos comer a carne dos nossos ancestrais, filhos e netos.

Quando comemos com a mente consciente, estamos em contato íntimo com a comida. O alimento que comemos chega até nós a partir da natureza, dos seres vivos e do cosmos. Tocá-la com a nossa total consciência é mostrar nossa gratidão. Comer conscientemente pode ser uma grande alegria. Nós pegamos a comida com o nosso garfo, olhamos para ela por alguns instantes antes de colocá-la na boca, e então a mastigamos cuidadosamente e conscientemente, pelo menos cinqüenta vezes. Praticando desta forma, estamos em contato com todo o cosmos.

Existem tipos de alegria que podem ser nutritivas e saudáveis, trazem-nos calma, conforto e nos deixam cheios de paz e frescor, e nos ajudam a permanecer claros e lúcidos. Este é o tipo de alegria que precisamos. Existem outros tipos de alegria que podem nos trazer muito sofrimento posterior: a alegria de ingerir alimentos prejudiciais à saúde, bebidas alcoólicas, doces em demasia, que trazem toxinas para dentro do nosso corpo. Temos que distinguir entre estes dois tipos de alegria. Uma é saudável e nutritiva e a outra destrutiva.

O alimento que comemos pode revelar a interconexão do universo, da Terra, de todos os seres vivos e de nós mesmos. Cada mordida no vegetal, cada gota de molho de soja, cada pedaço de tofu contém a vida do sol e da Terra. Podemos ver e provar todo o universo em um pedaço de pão! Podemos ver o significado e valor da vida nestes preciosos pedacinhos de comida.

Ter a oportunidade de sentar com a família e amigos e saborear um magnífico alimento é algo precioso, algo que nem todo mundo tem. Muitas pessoas no mundo estão passando fome. Quando eu seguro uma tigela de arroz ou um pedaço de pão, sei que sou afortunado e sinto compaixão daqueles que não têm o que comer e estão sem amigos ou família. Esta é uma prática muito profunda. Não precisamos ir a um templo ou uma igreja para praticar isto. Podemos praticar isto à nossa mesa de jantar. Comendo conscientemente podemos cultivar as sementes da compaixão e compreensão que fortalecerão nossa determinação de fazer algo para ajudar a nutrir as pessoas famintas e solitárias.

Uma coisa que podemos fazer é considerar o quanto de carne nós consumimos. Por mais de dois mil anos, muitos budistas têm sido vegetarianos com o propósito de nutrir compaixão pelos animais. Agora nós também descobrimos que mudar para uma dieta vegetariana pode ser uma das maneiras mais efetivas de lutarmos contra a fome mundial e o aquecimento global. A prática de criar animais para alimentação tem criado alguns dos piores prejuízos ambientais no planeta e é responsável por um quarto das emissões de gás do efeito estufa.

A nossa forma de comer e produzir alimento pode ser muito violenta para outras espécies, para os nossos próprios corpos e para a Terra. A Mãe Terra sofre profundamente por causa da maneira como nos alimentamos. Animais criados para abate é a maior fonte mundial de poluição de água; os dejetos das fábricas das fazendas e açougues escorrem para nossos rios, córregos e água potável. Somente nos Estados Unidos centenas de milhões de acres de florestas foram devastadas para plantar milho para alimentar animais de criação. As preciosas florestas tropicais que mantém o frescor do nosso planeta e provêm moradas para a maioria das espécies de plantas e animais da Terra estão sendo queimadas e limpas para criar terras de pastos para o gado.

Grande parte dos milhões de toneladas de grãos que plantamos não é usada para alimentar as pessoas, mas sim para criar gado para o abate e para produzir bebidas alcoólicas. Uma agência de proteção ambiental relata sobre a produção da agricultura de milho nos Estados Unidos no ano 2000 que de acordo com a National Corn Growers Association, cerca de 80% de todo milho plantado nos Estados Unidos é consumido pelos semoventes de fazendas ou granjas de criação nacionais e estrangeiras, produção de aves domésticas e peixe.3 Quando você segura um pedaço de carne e olha profundamente para ela, verá que uma quantidade imensa de grãos e água foi usada para fazer aquele único pedaço de carne. Uma enorme quantidade de grãos e água também é usada para fazer álcool. Todo dia dezenas de milhares de crianças morrem de fome e desnutrição; aquele grão poderia alimentá-las. Quando ingerimos bebida alcoólica em estado de consciência plena, compreendemos que estamos bebendo o sangue de nossos filhos. Estamos comendo nossos filhos, nossa mãe e o nosso pai. Estamos devorando a Terra.

Temos que pressionar as indústrias de semoventes para mudarem. Se pararmos de consumir elas pararão de produzir. Ao comer carne nós compartilhamos a responsabilidade de causar mudança climática, as destruições das florestas, e envenenamento do nosso ar e água. O simples ato de se tornar um vegetariano pode fazer uma diferença na saúde de nosso planeta. Se você não consegue parar completamente de comer carne, você ainda assim pode decidir se esforçar para diminuir. Retirando carne da sua dieta por dez ou mesmo cindo dias por mês, você já estará realizando um milagre – um milagre que ajudará a resolver o problema da fome nos países em desenvolvimento e reduzir dramaticamente os gases do efeito estufa.

A cada refeição, fazemos escolhas que ajudam ou prejudicam a Mãe Terra. “O que devo comer hoje?” é uma pergunta profunda. Pode ser que você queira fazer esta pergunta a si mesmo toda manhã. Você pode descobrir que, na medida em que pratica o consumo consciente e começa a olhar profundamente para o que come e bebe, o seu desejo por carne e bebida alcoólica diminuirá.

Em muitas tradições budistas, monges e monjas são vegetarianos. Muitos praticantes budistas laicos na China e Vietnã também são vegetarianos e existem outros que se abstém de comer carne dez dias por mês. Eu recomendo veementemente a todos que cortem os seus consumos de carne ao menos pela metade. Durante as minhas mais recentes visitas aos Estados Unidos, muitos praticantes budistas americanos me disseram que eles tinham se comprometido a parar de comer carne ou a comer cinqüenta por cento menos. Este é um despertar coletivo que já está acontecendo. Se conseguirmos assumir o compromisso de nos tornar vegetarianos, ou parcialmente vegetarianos, sentiremos bem-estar – teremos paz, alegria e felicidade desde o momento em que assumimos este compromisso. Nosso despertar coletivo pode criar mudanças no mundo inteiro.

Temos que praticar o consumo consciente para nos proteger, proteger nossas famílias, sociedades e planeta. Crianças, professores e pais todos podem praticar o consumo consciente. Os líderes de organizações e comunidades podem praticar o consumo consciente e encorajar outras pessoas a seguir seus exemplos. Se você fosse um Prefeito, iria querer proteger as pessoas da sua cidade do consumo irrefletido que traz mais violência e sofrimento para a sua cidade. Até o presidente da nação mais poderosa do mundo pode ser encorajado a consumir mais conscientemente. Até o presidente tem natureza búdica – a semente da compreensão e compaixão – em algum lugar dentro dele.

Quando somos capazes de sair da casca do nosso pequeno eu e ver que estamos inter-relacionados com todos e com tudo compreendemos que todos os nossos atos afetam toda humanidade e todo o cosmos. Manter o seu corpo saudável é um ato amoroso dirigido aos seus ancestrais, aos seus pais, futuras gerações e sociedade. Saúde não significa apenas saúde física, mas também saúde mental. Consumo consciente traz saúde e cura para nós mesmos e para o nosso planeta.

Do livro “The World we Have” de Thich Nhat Hanh
Tradução: Tâm Vân Lang/M. G. Rocha de Oliveira

http://www.viverconsciente.com/textos/dieta_planeta_consciente.htm
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